Os resultados obtidos até agora em modelos animais são promissores. Em um trabalho publicado na semana passada, também na Nature, cientistas usaram crisper para reverter a surdez congênita de camundongos que nasceram com uma mutação no gene Tmc1.
No caso da família Xavier, o alvo seria uma versão modificada do gene VAP-B, responsável por uma forma hereditária de esclerose lateral amiotrófica chamada ELA8.
A mutação foi identificada em 2004 pelo grupo da geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo (USP). Ela agora coordena um projeto de pesquisa com dezenas de membros da família de Xavier, que envolve o uso de crisper para “nocautear” (desligar) a versão defeituosa do gene em células in vitro e ver o que acontece com elas.
Dependendo dos resultados, poderia se pensar em uma terapia gênica pararela no futuro. “É uma tecnologia extremamente promissora, com um futuro muito grande no caso de doenças genéticas”, aposta ela.
Aos 74 anos, Xavier é um sonhador realista. Ele sabe que nocautear a mutação não vai reverter os estragos já causados ao seu corpo nesse estágio da vida. Mas quem sabe numa pessoa mais jovem, em que a doença ainda não se manifestou – como sua filha, de 30 anos? “Não penso tanto em cura, mas pelo menos num controle da doença”, diz ele. “Já seria um avanço tremendo.”
Há muitas outras mutações associadas a diferentes formas de esclerose lateral amiotrófica; mas, neste caso da doença hereditária, ela é causada pela alteração deste único gene. Cerca de 10 mil doenças desse tipo, chamadas monogênicas, são conhecidas da ciência, e poderiam potencialmente se beneficiar da técnica de crisper.
A possibilidade de se modificar o DNA de embriões humanos com relativa facilidade – graças ao crisper – é vista com entusiasmo e cautela pela comunidade científica internacional, que vem debatendo o assunto intensamente nos últimos anos.
Em uma conferência realizada em 2015, as Academias Nacionais de Ciência, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos concluíram que a técnica só deveria ser usada para fins de pesquisa em laboratório, e não para a implantação de embriões no útero. Agora, em um novo relatório lançado no início deste ano, a conclusão é de que ela pode, sim, ser usada para fins de reprodução humana, desde que seja para evitar a ocorrência de doenças graves e sem cura.
Ainda assim, muitos acreditam que a principal aplicação da técnica será para fins de pesquisa, visto que já é possível evitar a transmissão de doenças genéticas pela seleção de embriões sadios, em vez de tentar corrigir aqueles que têm a mutação.
“Como ferramenta de pesquisa é uma coisa extremamente poderosa”, diz a pesquisadora Lygia Pereira, do Instituto de Biociências da USP. Para fins reprodutivos, “é mais fácil selecionar do que editar”.
A arquiteta Júlia Xavier, de Belo Horizonte, viveu essa situação. Ao saber que tinha herdado a mutação ELA8 do pai, Cezar, ela optou por fazer uma fertilização in vitro e selecionar os embriões livres da doença. Desse processo nasceram os gêmeos Théo e Giovanna.
Ao contrário da maioria de seus parentes, que preferem não saber Júlia fez questão de se testar para descobrir se era portadora da mutação. Aos 30 anos, ela ainda não tem sintomas, mas sabe que eles vão aparecer. “Conviver com a dúvida para mim era muito pior”, justifica.
Sobre a possibilidade de um dia, quem sabe, fazer uma terapia gênica com crisper para desligar a mutação em seu organismo, Júlia diz que “seria cobaia na certa”. Ela também participa do projeto de pesquisa da geneticista Mayana Zatz.
Mayana concorda que é mais fácil selecionar embriões, mas lembra que muitas mulheres produzem poucos e, por isso, podem não ter essa opção de escolha. Nesses casos, o crisper seria uma alternativa.
O entusiasmo é justificado, mas a cautela também, diz a pesquisadora Angela Saito, do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, que utiliza crisper para gerar camundongos com mutações associadas a doenças do sistema nervoso.
Apesar de ser uma técnica bastante eficiente, diz ela, o crisper não é livre de riscos. O principal deles é o de causar alterações em outras partes do genoma, além da mutação alvo. A acurácia, segundo ela, varia de acordo com o gene e o organismo envolvidos na pesquisa. “Tem de pesar os riscos e os benefícios na balança”, diz.
Outra preocupação, de natureza ética, refere-se ao possível uso do crisper para fazer alterações no genoma não relacionadas à cura de doenças, mas a razões “cosméticas” ou visando à introdução de vantagens físicas ou cognitivas, tipo força ou inteligência.
“O risco existe e temos de estar preparados”, diz o médico Dirceu Greco, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. “A pesquisa tem de ser incentivada, sempre; mas deve ser feita da maneira correta, com regras claras e com precaução.”
“São preocupações importantes, às quais as agências regulatórias precisarão estar atentas”, avalia Angela.
de VEJA